Uma mudança de paradigma no combate à criminalidade económica e financeira

A sociedade contemporânea desenvolve-se num contexto jurídico e moral cada vez mais complexo. O que anteriormente pareciam ser limites claros do direito penal económico e financeiro, hoje apresentam-se como uma realidade cada vez mais difusa e ambivalente. A crescente digitalização, a globalização e a interligação entre interesses públicos e privados esbatem as fronteiras entre comportamentos legais e puníveis. Estes desenvolvimentos exigem uma reavaliação profunda das ferramentas jurídicas, do princípio da proporcionalidade no processo penal e das dimensões éticas da aplicação do direito. A necessidade de uma mudança de paradigma no combate a este tipo de criminalidade deixou de ser meramente teórica ou política: é concreta, urgente e juridicamente incontornável. Neste contexto, o dano reputacional decorrente de uma acusação de criminalidade económico-financeira representa uma ameaça existencial para empresas, organismos públicos e gestores.

Basta uma suspeita – mesmo sem prova nem condenação – para equivaler, na prática, a uma condenação perante a opinião pública. Para empresas e organizações, a ausência de uma sentença penal não oferece qualquer proteção face às consequências sociais da estigmatização, do congelamento de bens ou da paralisação operacional. Neste cenário, a abordagem jurídica clássica – essencialmente reativa – revela todas as suas limitações. É necessário um novo paradigma, no qual a capacidade de antecipação e a estratégia jurídica desempenhem um papel central. A competência jurídica já não se limita à defesa: torna-se num instrumento preventivo e estratégico contra o impacto devastador de acusações infundadas, campanhas mediáticas e sanções administrativas. O combate à criminalidade económica e financeira já não é apenas uma questão de direito, mas sim de sobrevivência institucional.

A força desestabilizadora da acusação: desintegração jurídica e operacional

A acusação de envolvimento em criminalidade económica ou financeira – mesmo que seja apenas indiciária ou infundada – atua como uma força capaz de abalar os alicerces de uma organização. A simples suspeita de irregularidades, seja por corrupção, branqueamento de capitais ou fraude contabilística, desencadeia uma cadeia de reações internas e externas que frequentemente paralisam a atividade corrente. Os departamentos de compliance veem-se obrigados a rever processos internos, são lançadas investigações internas, e figuras-chave são suspensas, temporária ou definitivamente. Esta fragmentação interna leva à inação precisamente quando seria crucial uma reação rápida e coordenada.

A estas consequências jurídicas somam-se frequentemente reações em cascata: parceiros comerciais rompem contratos, bancos encerram contas ou cessam relações, fornecedores cancelam colaborações por medo de riscos reputacionais e investidores abandonam o projeto. Tudo isto acontece não com base em provas factuais, mas por mera suspeita. O princípio basilar da presunção de inocência inverte-se, de facto. No mundo económico, a suspeita equivale a uma condenação executada de imediato.

As consequências não são apenas económicas. A pressão psicológica sobre membros da administração, órgãos de fiscalização e colaboradores é esmagadora. A dúvida sobre a integridade profissional, a perda de confiança interna e externa e a impossibilidade de se defender publicamente geram um ambiente em que o apoio jurídico já não é apenas uma questão processual, mas sim um pilar essencial da gestão de crise e da proteção reputacional. Este contexto exige uma ação focada, estratégica e coerente – um equilíbrio entre competência jurídica, clareza tática e firmeza ética.

A dimensão internacional da escalada jurídica

Num mundo em que as estruturas empresariais ultrapassam fronteiras nacionais, as acusações por criminalidade económica e financeira assumem imediatamente uma dimensão internacional. As competências das autoridades de supervisão, dos ministérios públicos e dos órgãos administrativos estendem-se muito além do país de origem da entidade visada. A cooperação internacional em matéria de enforcement – através de tratados, trocas de informação e mecanismos institucionais – provoca um efeito dominó que propaga uma acusação por várias jurisdições em simultâneo. O resultado é uma escalada fragmentada, mas sincronizada, que obriga as empresas a enfrentarem investigações, bloqueios e pressões mediáticas em diversos países.

Na prática, isto significa que a estratégia jurídica já não pode ser limitada ao plano nacional. É necessário abarcar diferentes ordenamentos jurídicos, regimes processuais diversos, padrões probatórios heterogéneos e múltiplos sistemas sancionatórios. Uma empresa ou gestor acusado pode enfrentar simultaneamente responsabilidade penal no seu próprio país, responsabilidade civil no estrangeiro, sanções administrativas de reguladores externos e até processos extraterritoriais em jurisdições terceiras. Esta complexidade exige uma abordagem multidimensional, onde a coerência jurídica e a diplomacia estratégica se complementem.

O risco de regulatory overreach – isto é, a intervenção de autoridades estrangeiras sem base jurídica no país envolvido – já é uma realidade. Isto impõe uma harmonização rigorosa das práticas de compliance, válida para todas as jurisdições envolvidas e, ao mesmo tempo, operacionalmente viável. É igualmente essencial contar com assessores jurídicos com experiência em sanções internacionais, procedimentos transfronteiriços e nas dinâmicas geopolíticas que cada vez mais moldam o ambiente regulatório.

Gestores sob pressão: responsabilidade jurídica e condenação moral

Num clima de hipersensibilidade em relação à criminalidade económico-financeira, os gestores empresariais encontram-se no epicentro de riscos jurídicos e pessoais cada vez mais intensos. Se anteriormente o direito penal se centrava na responsabilidade das pessoas coletivas, hoje o foco recai cada vez mais sobre as pessoas singulares em cargos de liderança. Esta evolução responde a uma exigência crescente – social e política – de transparência, prestação de contas e responsabilização individual. Cada ato – ou omissão – do gestor está sujeito a um duplo escrutínio: jurídico e moral.

Daqui decorre uma combinação de riscos: sanções administrativas, medidas disciplinares, ações cíveis e processos penais – frequentemente em simultâneo. A fronteira entre responsabilidade de gestão e responsabilidade penal torna-se cada vez mais ténue. O simples facto de ocupar uma posição de direção numa estrutura onde ocorreram irregularidades pode ser suficiente para suscitar suspeitas de corresponsabilidade ou negligência.

Para além do risco jurídico, emerge cada vez mais o risco de condenação moral. A opinião pública – alimentada pelos media e pelo discurso político – tende a atribuir aos gestores a responsabilidade por qualquer disfunção organizacional, independentemente da sua implicação direta. Esta lógica de culpabilização moral cria um ambiente em que a defesa jurídica é apenas uma componente de uma luta mais ampla pela reputação, continuidade profissional e sobrevivência pessoal. Assim, uma estratégia jurídica proativa e inteligente torna-se indispensável – não apenas para organizar a defesa, mas para preservar a legitimidade do papel de liderança.

O papel do compliance e do controlo interno: rede de proteção ou armadilha legal?

As exigências crescentes em matéria de compliance e controlo interno são frequentemente apresentadas como barreiras contra a criminalidade económico-financeira. Em teoria, estes sistemas existem para identificar, mitigar e documentar riscos. Na prática, porém, tornam-se muitas vezes fontes de responsabilidade jurídica: a ausência de um procedimento documentado, um mapa de riscos incompleto ou uma formação inadequada podem ser interpretados como sinais de negligência ou até de dolo eventual.

O problema é evidente: quanto mais complexo for um sistema de compliance, mais vulnerabilidades oferece do ponto de vista investigatório. Mesmo um erro isolado pode ser utilizado como prova de falta de supervisão ou de conduta dolosa. Esta realidade exige uma profunda reestruturação dos modelos de compliance: já não podem ser sistemas rígidos e formais, mas sim estruturas dinâmicas, adaptáveis e juridicamente sólidas. O compliance torna-se parte integrante da estratégia de defesa, e não apenas um requisito regulatório.

Além disso, o compliance não pode ser concebido como uma atividade isolada. Deve ser integrado numa estratégia jurídica global. A colaboração entre advogados, peritos forenses e especialistas em risco deve ser fluida e sinérgica. Neste contexto, factos, normas e vulnerabilidades são analisados de forma coerente. O compliance transforma-se assim em prova tangível de boa governação corporativa e numa ferramenta estratégica para a prevenção e proteção jurídica.

A mediação no processo penal: o “julgamento pelos meios de comunicação” como ferramenta de poder processual

No contexto jurídico atual, o panorama midiático desempenha um papel indiscutível e muitas vezes desestabilizador na formação da opinião pública sobre supostas infrações financeiras e econômicas. A separação tradicional entre a avaliação judicial e a opinião pública tem se tornado difusa, com os meios de comunicação atuando como atores informais, porém extremamente influentes, no processo penal. As acusações de fraude, corrupção ou lavagem de dinheiro frequentemente se difundem muito antes da apresentação de provas no tribunal. Essa mediação prematura não favorece nem a transparência nem a busca pela verdade, mas funciona como uma condenação pública, onde o princípio fundamental da presunção de inocência é completamente pisoteado.

Para os acusados — sejam pessoas jurídicas ou físicas — isso constitui uma ameaça existencial. Em uma era em que as redes sociais, reportagens subjetivas e plataformas sensacionalistas permitem a rápida disseminação de informações, corretas ou não, a reputação dos envolvidos é irremediavelmente comprometida antes que a justiça siga seu curso. Essa forma de «julgamento midiático» não tem apenas consequências sociais, mas também exerce uma pressão direta sobre o processo penal formal. Promotores, autoridades de controle e até mesmo juízes não podem permanecer insensíveis à emoção pública gerada por essas campanhas midiáticas.

Portanto, a estratégia jurídica não pode se limitar ao processo judicial. Requer uma análise minuciosa do ambiente midiático, vigilância constante da cobertura e, se necessário, o uso de ferramentas jurídicas e comunicativas para refutar representações equivocadas. Publicações podem ser contestadas por vias civis, e a gestão do contato com a mídia deve ser conduzida com grande cuidado para corrigir a narrativa em torno de um caso. Os advogados devem ser, portanto, não apenas habilidosos profissionais processuais, mas também defensores da reputação e da integridade em uma arena onde as verdades jurídicas se perdem na indignação pública.

O papel das autoridades de controle como órgãos quasi-judiciais

As autoridades de controle atuam cada vez mais como entidades híbridas: responsáveis tanto por regular e fiscalizar, quanto por exercer funções sancionatórias de fato. Possuem prerrogativas que afetam profundamente as posições jurídicas de empresas e indivíduos, sem que sempre sejam respeitadas as mesmas garantias previstas para o processo penal formal. Os poderes para impor sanções pecuniárias por parte de autoridades como a AFM, o DNB ou a ACM são agora tão extensos que o limite entre sanção administrativa e sanção penal tende a se diluir na prática. Essa evolução é especialmente evidente no direito penal empresarial: sem controle judicial prévio, podem ser aplicadas multas milionárias, revogadas licenças ou realizados relatórios a nível internacional.

Esse fenômeno — também chamado de «criminalização administrativa» — representa um deslocamento fundamental do campo jurídico. As medidas sancionatórias das autoridades de controle são aplicadas sem investigação penal preliminar, sem direito à defesa e sem respeitar os mínimos requisitos probatórios penais. Frequentemente, os sujeitos implicados sofrem pressões para colaborar em procedimentos «informais» dentro do controle, embora as consequências reais sejam comparáveis a sanções penais.

Nesse contexto, a defesa estratégica não se dirige apenas ao procedimento judicial, mas também a influenciar precocemente o próprio processo de controle. Isso exige um conhecimento profundo do direito administrativo, bem como das interações entre autoridades de controle e Ministério Público, e da cooperação internacional em matéria de obrigações declarativas no setor financeiro. O fator tempo é crucial nesses casos. Qualquer atraso na detecção de sinais de alerta ou qualquer subestimação das consequências jurídicas de uma comunicação informal com as autoridades de controle leva inevitavelmente à escalada e à irrevogabilidade jurídica.

As provas forenses e a assimetria informacional

No âmbito da criminalidade financeira e econômica, a prova geralmente não se baseia em testemunhos diretos ou indícios materiais, mas em dados administrativos complexos, reconstruções digitais e análises forenses contábeis. A avaliação desses dados é por natureza subjetiva, enquanto a apresentação de cifras e documentos costuma dar erroneamente uma impressão de objetividade. Essa prova tecnocrática cria uma assimetria informacional entre as autoridades penais e a defesa, com a parte que dispõe das fontes de dados e capacidades de cálculo tendo geralmente vantagem na valoração jurídica.

Para a defesa, é essencial retomar o controle do material fático. Isso requer não apenas competência jurídica, mas também acesso a peritos forenses, auditores contábeis, analistas de dados e especialistas em compliance. Somente desenvolvendo uma análise contraditória sólida é possível questionar eficazmente a imagem unilateral apresentada pelos investigadores. Em casos complexos, isso pode exigir meses de trabalho, reconstruindo cada documento, cada transação e cada comunicação até sua origem, contexto e significado jurídico.

Além disso, muitos processos apresentam um desequilíbrio jurídico devido à ausência de acesso a certas informações em mãos das autoridades. O poder de solicitar dados digitais, registrar servidores ou obter comunicações de terceiros é exercido exclusivamente pelas forças de ordem, sem que a defesa tenha uma posição comparável. Essa situação desigual impõe à defesa não ficar passiva, conformando-se com os elementos apresentados, mas buscar ativamente fontes, reconstruções e modelos interpretativos capazes de matizar ou desmentir os fatos. É essa estratégia de defesa ativa e orientada à investigação que marca a diferença entre dominação e contrapoder.

A importância da assessoria jurídica estratégica preventiva

Diante da aceleração e endurecimento das investigações e medidas coercitivas, a atitude clássica de mera reação é totalmente insuficiente. A assessoria jurídica não pode se limitar a manifestações defensivas, mas deve ser integrada à reflexão operacional das organizações. A assessoria estratégica significa que as implicações penais sejam consideradas desde o desenho das estruturas de governança, das rotinas de compliance e dos processos decisórios. O direito deixa de ser uma ferramenta de defesa ex post para se tornar um elemento constitutivo da imunidade jurídica.

Essa forma de atuação jurídica proativa implica uma análise profunda de todas as áreas de risco em uma organização: desde as estruturas contratuais até os sistemas internos de reporte, desde as medidas anti-lavagem até as políticas éticas remuneratórias. Cada um desses elementos contribui para o perfil jurídico da empresa e pode, se não for gerenciado adequadamente, representar um ponto de entrada para suspeitas penais. Nesse contexto, a assessoria jurídica se configura como gestão de risco: antecipar as questões que a justiça, as autoridades de controle ou os meios poderiam levantar.

Isso impõe ao assessor jurídico uma posição de integração. Não mais simples fornecedor externo chamado em situações de crise, mas interlocutor estruturado nas decisões estratégicas. Isso significa também que a integridade jurídica não é apenas assunto do serviço jurídico, mas deve ser sustentada por todo o modelo de governança. Só essa abordagem permite a uma empresa se proteger das consequências implacáveis de uma suspeita que se espalha como uma mancha de tinta sobre seu nome, sua rede e seu futuro.

Em conclusão: rumo a um novo ethos jurídico na sociedade do risco

O combate à criminalidade financeira e econômica requer mais que a mera elucidação, persecução e sanção. Exige uma reflexão fundamental sobre o papel do direito na sociedade e sobre como este protege contra a arbitrariedade, os abusos de poder e a histeria social. Em um mundo onde os riscos estão institucionalizados, as expectativas midiáticas e as verdades jurídicas sufocadas pela opinião pública, é necessário um ethos jurídico capaz de resistir às tempestades de indignação e às simplificações.

Esse novo ethos deve se basear nos princípios de justiça, proporcionalidade, direito de ser ouvido e na convicção profunda de que o direito não deve ser instrumentalizado politicamente nem usado como alavanca comercial. Requer coragem por parte dos profissionais do direito para argumentar contra a corrente, matizar e defender os direitos daqueles que o sistema designa como bodes expiatórios. Isso é especialmente verdadeiro nos assuntos financeiros e econômicos cuja complexidade induz a conclusões precipitadas e simplistas.

Em última análise, a tarefa do direito é proteger o vulnerável: a reputação, a segurança jurídica e a dignidade humana. E é nessa proteção que reside a força do Estado de direito — não apenas na sanção, mas na garantia de um processo justo, de um procedimento correto e de um futuro onde o julgamento jurídico não seja a última palavra, mas onde prevaleça o próprio direito.

Temas Relacionados

Especializações Relacionadas

Previous Story

Gestão de riscos de crimes financeiros e económicos na era digital

Next Story

Gestão do crime financeiro e econômico a nível setorial

Latest from Atividades principais